Borderline - Parte II

Mercado Sali.

Istambul é, sem qualquer dúvida, uma cidade profundamente marcada pela multiculturalidade. Não, mais do que isso. Istambul é mais do que uma simples mistura de culturas. Basta percorrermos as suas ruas para a vivermos, para a sentirmos. Istambul é uma cidade que invade e se entranha na alma das pessoas, sem pedir licença e sem aviso prévio, transformando esta “multiculturalidade” num aglomerado único, em que a individualidade da cidade se impõe à individualidade de cada um.

Mas Istambul é também uma cidade que vive a dois ritmos completamente distintos, onde coabitam diferentes realidades. Apesar de a alma de Istambul ser omnipresente, existem várias comunidades e bairros quase fechados, que chegam mesmo a ser hostis a estranhos. O mais extraordinário é quando todas estas definições se aplicam a um único bairro. Apesar de Tarlabasi ser uma comunidade extremamente fechada, estranhamente, é também um bairro repleto de diferentes culturas que aprenderam ou que são obrigadas a partilhar o mesmo espaço.

Uma vez mais, o meu prédio não poderia ser melhor exemplo deste peculiar fenómeno: para além da excepcional família curda, vivíamos ainda com uma família de japoneses, Julie, uma empresária francesa, e Michael, um professor britânico homossexual. Obviamente, nenhum destes vivia em Tarlabasi com o mesmo à vontade que os nossos vizinhos curdos. Da família de japoneses, só o pai saía de casa para ir trabalhar (nunca cheguei a ver a mãe, pois nunca saía nem abria a porta a estranhos sem o marido estar presente). Julie, a empresária francesa, nunca passava muito tempo em Istambul por causa dos negócios, mas visitava-nos após cada regresso. Penso que nunca se chegou a sentir completamente em casa nesta cidade e que falar um pouco connosco tornava a situação mais fácil. Partiu no primeiro dia do ano, deixando-nos uma garrafa de champanhe, e nunca mais regressou. Michael é o típico britânico, extremamente educado e organizado e que se enquadra no contexto turco, claramente, como um peixe fora de água. Nunca conseguimos perceber porque escolheu um país tão conservador para ensinar. Renovou de tal forma o seu apartamento que ninguém conseguiria encontrar uma única semelhança com o nosso e, muito menos, com o da família curda. Não, estou uma vez mais enganada. Houve algo que Michael não pôde mudar, mesmo não combinando em nada com o novo estilo e com a decoração moderna do seu apartamento, e que continua e continuará a ser igual para todos os habitantes deste prédio em Tarlabasi e de muitos outros prédios de Istambul: o “buraco”.

Enclaves

Em Istambul, "o buraco” é um fenómeno tão significativo que Orhan Pamuk, em O Livro Negro, lhe dedica um capítulo inteiro[1]: “Les jours où toute la famille allait dîner à l’étage du grand-père, la bonne utilisait le puits d’aération pour annoncer, en criant de tout sa voix, à ceux de l’étage d’en bas et aussi à tous les locataires de l’immeuble voisin, que le dîner était prêt. Les soirs où ils n’y avaient pas été conviés, la mère et le fils, relégués au dernier étage, lançaient de temps à temps un regard par la fenêtre, qu’ils tenaient ouverte, de leur cuisine, pour épier les plats du menu et les intrigues d’en bas.", p. 332.

De facto, ainda não sei ao certo com que finalidade, talvez para depósito do lixo, mas, nesta cidade, muitos prédios foram construídos com um buraco quadrangular no centro. Um buraco vertical, de cerca de três m2 de largura, cuja única abertura para o exterior se situa no topo do prédio, e para o qual todos os apartamentos dispõem de duas ou mais janelas. Apesar de actualmente não ter qualquer função específica, a quantidade de janelas concentradas num espaço tão fechado (no nosso apartamento, por exemplo, tanto a cozinha, como a sala e um dos quartos só tinham vista para “o buraco”) leva a que este, necessariamente, faça parte do dia-a-dia e da vida de cada apartamento e de toda a comunidade do prédio. É através do buraco que as mães gritam pelos filhos para que venham almoçar ou jantar, é para o buraco que inexplicavelmente alguém atira água de vez em quando. É no buraco que vive uma larga família de ratazanas, que passamos horas a observar, num misto de terror e de fascinação.

Para além do “buraco”, este prédio possui ainda outros dois espaços comuns: a cave, onde penso que, exceptuando todos os gatos da vizinhança, ninguém entra há anos, dado o odor pútrido e nauseabundo que daí provem, e o local onde passei várias tardes encantadoras, o terraço. Embora seja um local praticamente esquecido, bastante sujo e a precisar urgentemente de obras, a velha cadeira de baloiço e a impressionante vista, de um lado o aqueduto e o Bósforo, do outro Tarlabasi, fazem com que este terraço se torne num local mágico, onde, perante a dimensão da cidade, qualquer pessoa se sente tão pequena como uma formiga, mas extremamente privilegiada, simplesmente por ter a oportunidade de observar Istambul.

Obviamente, não sei o que o futuro me reserva, mas penso que o dia-a-dia no nosso pequeno apartamento em Tarlabasi foi e continuará a ser um dos períodos mais marcantes da minha vida. Viver em Tarlabasi é viver em constante estado de alerta, sem deixar de se ser surpreendido todos os dias. É estar-se sempre prevenido, sem deixar de se ser apanhado desprevenido.

Ainda hoje penso nos pobres homens que trabalham dia e noite num buraco (um outro tipo de buraco) do apartamento da frente, onde acumulam todo o tipo de sucata, móveis e velharias. Uma cave escura e muito suja, na qual, por vezes, só se vêem os seus pequenos olhos a brilhar. É impossível ficar-se indiferente a estas pobres vidas que se esgotam ao ritmo do vai e vem de objectos alheios. Todos os dias, a chegada e a partida de mercadorias provoca alguma azáfama no bairro, sobretudo quando se descobrem pequenas relíquias, como uma antiga máquina de escrever, que tanto apaixonou um dos meus colegas de casa, um jornalista espanhol.

Esta cave, “o buraco da frente”, como lhe chamávamos, é um local misterioso e difícil de compreender, como muitos outros em Istambul. Pela nossa observação diária, os objectos e materiais que chegam são muito mais do que os que partem. Todos os dias, os “homens da cave” carregam tudo e mais alguma coisa para este local. Para mim e para muitos outros habitantes do bairro, esta cave é como um buraco sem fim, labiríntico, constituído por diversas galerias, repletas de relíquias e tesouros antigos. Curiosamente, esta ideia é um pensamento comum relativamente a Istambul. Dada a sua riqueza histórica, muitos são os mistérios que assombram esta cidade e várias são as lendas e histórias sobre túneis e catacumbas que percorrem e interligam o coração desta cidade. Apesar de tudo, não é difícil de se acreditar nesta possibilidade, sobretudo quando é do conhecimento geral que sempre que se abre um buraco na zona histórica da cidade se encontram novos artefactos e relíquias de diferentes períodos. Tendo em conta que Istambul é uma cidade conhecida pela sua colossal riqueza histórica, é perturbante imaginar tudo o que se pode encontrar soterrado sob as suas ruas, os seus monumentos, as casas, os mercados… Como exemplifica a edição de 27 de Maio de 2008 do jornal Le Monde (p. 3), “o túnel ferroviário que ligará daqui a uns anos as duas margens de Istambul, passando por debaixo do Bósforo, permitiu a descoberta de centenas de objectos datando da época bizantina, mas também da época otomana, e de diversos pontos históricos de grande importância. Vestígios do neolítico, um porto bizantino, um pedaço de 50 metros das muralhas de Constantinopla, nunca antes encontradas nesta área, já emergiram no local. Desde há quatro anos que mais de 70 arqueólogos e de 700 trabalhadores estão em actividade dia e noite.”. E, tudo isto, no centro de Istambul.

Divisão

No entanto, não é com o curioso agregado de roedores que habita o buraco que termino a lista de moradores do nosso prédio. Embora tenha sido a família curda quem mais me marcou, deixei para o fim um grupo que é, sem dúvida, o mais relevante: no primeiro andar do prédio encontra-se situada a sede do DTP, o Partido Sociedade Democrática, um partido de esquerda, pró-curdo, isto é, que defende a criação de um Estado curdo, independente, no Curdistão (região dividida nas fronteiras da Turquia, do Irão, do Iraque e da Síria).

Apesar de todos termos bem noção que qualquer movimento pró-curdo é regularmente alvo de represálias e de atentados, nunca tive grandes preocupações a nível de segurança, até ao dia em que acordei às quatro horas da madrugada com um grande estrondo. Ainda tive tempo para pensar na possibilidade de estar a sonhar, mas imediatamente comecei a ouvir vidros a partir e vozes perturbadas. Apesar de Istambul não ser uma cidade nada silenciosa, não tive dúvidas de que algo grave se tinha passado e decidi acordar toda a gente, just in case. Saía fumo pelas janelas do primeiro andar e a rua estava repleta de pessoas assustadas. Os bombeiros não tardaram a chegar e o rumor de que o escritório do DTP tinha sido alvo de um atentado com um cocktail molotov espalhou-se por todo o bairro ainda mais rapidamente.

Evidentemente, ninguém pregou olho nessa noite e a possibilidade de novos atentados assombrou muita gente. Fui trabalhar na manhã seguinte e mal pude acreditar no que vi quando regressei a casa. Em vez de começarem a actuar de forma mais discreta ou de planearem retaliações, os membros do DTP decidiram responder ao atentado da maneira mais aterrorizadora que poderiam ter encontrado: organizando uma enorme festa e convidando todos os curdos do bairro.

No nosso apartamento, a semana seguinte foi de pânico constante. O estado de alerta geral traduziu-se pelo silêncio e, ao mínimo barulho, os nossos corações disparavam e o sobressalto invadia-nos. Para piorar a situação, o prédio não tinha caixas de correio e os envelopes ou encomendas eram deixados no rés-do-chão até que o destinatário os visse. Durante várias semanas não nos saiu do pensamento que, qualquer que fosse a resposta à provocação, seria certamente mais grave que um cocktail molotov. Ainda hoje me custa a acreditar que a festa não provocou retaliações. Ainda hoje não sei como é que os opositores engoliram a afronta e a ousadia mas sinto-me profundamente agradecida por tal ter acontecido.

É importante lembrar que esta é uma questão extremamente sensível para a Turquia, país onde existe uma comunidade de 11 a 15 milhões de curdos, considerada pelo governo como uma ameaça à segurança nacional do país. A palavra “genocídio” é tabu e completamente condenada pelo governo, mas não é difícil de a encontrar no olhar de cada turco. Aziz, um colega de faculdade, nunca conseguiu deixar de se sentir assombrado por este fantasma e contou-me que planeava fugir para a América do Sul, para escapar ao serviço militar. Sinan, um outro colega e uma pessoa extremamente simpática e trabalhadora, esteve preso durante algum tempo. Nunca me contou porquê, mas corria o rumor de que foi condenado por participar numa manifestação pró-curda. Desde sempre que os curdos têm resistido às tentativas de assimilação forçada por parte do governo turco. Mesmo após a supressão da sua língua e a abolição das palavras “curdo” e “Curdistão” dos dicionários e décadas de incentivo ao uso do turco, a maior parte continua a falar a língua curda. E este é um facto que em Tarlabasi não passa despercebido.

Cidade karisik [2]

Para além do vaivém das mercadorias do “buraco da frente” e dos casamentos ciganos, eventos que provocam o caos durante quatro dias no mínimo, a azáfama é uma constante na nossa rua: os miúdos que jogam à bola e sonham em vir a ser grandes estrelas do futebol turco, as miúdas que jogam à macaca e que olham com curiosidade os estrangeiros, as mulheres que passam a tarde sentadas nas escadas dos prédios, a conversar e a observar a vizinhança, ao mesmo tempo que preparam os vegetais para o jantar… E que, pelo menos uma vez por mês, trazem as suas belas carpetes para a rua, onde as lavam e esfregam, sem se preocuparem com o trânsito ou com quem passa.

Neste mesmo espaço, é impossível não se reparar também na enorme quantidade de gatos que vagueiam pelas ruas, desfrutando do sol e da simpatia de quem passa. Apesar de não existir qualquer explicação lógica, os turcos têm uma relação bastante próxima com os gatos vadios, permitindo que estes ocupem qualquer espaço inabitado e alimentando-os regularmente. Na rua, várias vezes me deparei com taças de ração para gato e, surpreendentemente, sobretudo nos bairros mais pobres. Para além disso, numa cidade onde a circulação rodoviária é gerida pela lei do mais forte e onde é extremamente difícil ser-se um peão ou ir-se a algum lado de bicicleta, cheguei a ver o trânsito parar por completo apenas para que um gato pudesse atravessar a rua. Ninguém sabe explicar este fenómeno, e há mesmo quem o negue, mas a verdade é que, na Turquia, os gatos beneficiam de um estatuto bastante privilegiado.

Apesar de Istambul se “modernizar” e “ocidentalizar” um pouco mais a cada dia que passa, a vida na maior parte dos bairros ainda gira exclusivamente em torno do comércio local e dos vendedores ambulantes. Na minha rua, por exemplo, todos os dias por volta da hora em que terminam as aulas, ouve-se apregoar ao longe “SAHLEP, SAHLEP, SAHLEP!!!” (uma bebida quente feita à base de raízes de orquídeas). A voz vai-se aproximando, percorrendo cada viela, repetindo o pregão incansavelmente, até se afastar e deixar de se ouvir por completo.

Para além do “negócio do buraco da frente”, existe também um vendedor de frutos ambulante (que raramente sai do mesmo sítio) e um outro local bizarro, uma loja inicialmente repleta de ovos praticamente até ao tecto, actualmente transformada num atelier de exposição de fotografias. No entanto, o coração do comércio local encontra-se numa pequena loja típica, onde, como na maior parte das lojas turcas, se pode encontrar e comprar de tudo. O mais curioso é que esta loja está aberta 24 horas por dia e é gerida apenas por dois irmãos curdos, que se revezam, dormindo no camião estacionado do outro lado da rua. Neste tipo de lojas, algo que imediatamente se descobre é que a palavra é mais importante do que o dinheiro. Por exemplo, apesar de cada fruto ter um preço diferente, ao quilo, na altura de pagar, todos os sacos são pesados ao mesmo tempo e o preço total é calculado de forma quase aleatória, sem recurso a qualquer instrumento de cálculo. Embora difícil de se compreender e de se aceitar, o comércio turco baseia-se sobretudo na interacção imediata entre o vendedor e o cliente. O vendedor pode estipular um preço com uma margem de mais de 70% de lucro ou de apenas 5%, por exemplo. Sinceramente, à excepção de quando se espera que o cliente regateie o preço, nunca consegui decifrar os critérios que levam a um preço ou ao outro.

No entanto, apesar de todas as dificuldades de comunicação, acabei por chegar à conclusão de que, para mim, um dos maiores problemas de viver em Tarlabasi, não foi o convívio com a população local, mas sim os preconceitos existentes em relação a este bairro. Por exemplo, Istambul é uma cidade cujas reservas de água potável são insuficientes, por isso, verificam-se frequentemente cortes temporários no abastecimento de alguns bairros, sobretudo no Verão. Tendo em conta a reputação de Tarlabasi, obviamente, este é o primeiro bairro a sofrer com este problema. Há bens essenciais que tomamos como adquiridos e cujo valor só descobrimos em caso de verdadeira necessidade. Após três dias sem uma única gota de água a correr pelos canos, a meio de um Verão abrasador e extremamente seco, saí de casa pela manhãzinha, entrei num dos melhores e mais modernos cafés da Istiklal, Mado, pedi um pequeno-almoço e ocupei a casa de banho durante meia hora. Nem senti a falta de um chuveiro, o lavatório chegou perfeitamente para me voltar a sentir uma pessoa de novo. Normalmente, quando pensamos em falta de água, a primeira ideia que nos passa pela cabeça é sede. Neste caso, dispondo de água engarrafada para beber e cozinhar, o grande problema foi viver com mais cinco pessoas e partilharmos todas a mesma casa de banho.

Todas as minorias

Não posso concluir este modesto retrato do bairro turco onde vivi durante cerca de um ano, sem fazer referência a um outro fenómeno que bastante me intriga, ainda hoje, sobre uma outra comunidade que procurou abrigo em Tarlabasi. À noite, quando já não se vêem mulheres de véu nem crianças, as ruas deste bairro invadem-se de travestis. Estes constituem, sem qualquer dúvida, uma grande comunidade e muitos turcos e mesmo estrangeiros consideram Tarlabasi como o centro da procura/venda de sexo em Istambul, cidade onde existem cerca de 20 mil travestis. Como refere Deniz Kandiyoti no artigo “Transsexuals and the Urban Landscape in Istanbul”[3], em Tarlabasi, os transexuais são membros de uma cultura local com consciência própria, que desenvolveu o seu próprio vocabulário. Até 1996, os travestis constituíam uma comunidade relativamente estável, baseada numa rotina bem estabelecida de protecção e subornos. No entanto, nesse ano, Istambul recebeu a conferência Nações Unidas Habitat II, "A Cimeira da Cidade", o que levou a uma massiva operação de limpeza de vários bairros, atingindo profundamente a comunidade transexual.

Ainda segundo Kandiyoti, poucos grupos sociais receberam tanta visibilidade e atenção mediática como os transexuais (de homem para mulher) receberam na Turquia nestes últimos anos: “parte da fascinação em torno dos transexuais está, sem dúvida, relacionada com o desconforto que causam na moralidade e nos conceitos dominantes sobre sexo e identidade. Numa sociedade que preza a masculinidade e que possui diversos tabus em relação à expressão da sexualidade feminina, os travestis ostentam com uma vaidade agressiva o estilo feminino e habitam geralmente um submundo sombrio de diversão e de prostituição”.

É de salientar que, contrariamente à maior parte dos países islâmicos, a Turquia é um país cuja legislação permite cirurgias de mudança de sexo e relações homossexuais. Em 1988, foi promulgada uma lei que legaliza a mudança de sexo através de cirurgia, baseada no precedente de Bülen Ersoy, curiosamente uma das cantoras mais adoradas da Turquia, que apelou em tribunal o reconhecimento da sua identidade como mulher, após uma operação de mudança de sexo, em Londres.

Apesar de Tarlabasi continuar a ser o bairro das minorias e dos indesejáveis, as frequentes perseguições e a pressão constante por parte das autoridades, fazem-me pensar que estes dias podem estar a chegar ao fim. Existe uma nova elite que está a redescobrir a antiga beleza de Istambul e o seu legado histórico, do qual faz parte Tarlabasi. No passado, as antigas casas de madeira, do estilo otomano, foram negligenciadas e, por vezes, demolidas ou queimadas (o que é excepcionalmente descrito por Orhan Pamuk em Istanbul: Memórias de uma cidade), para darem lugar a estradas ou blocos de apartamentos “rentáveis mas sem alma”. Actualmente, o boom do aumento do valor das propriedades já se começou a sentir até neste bairro (o que provavelmente levou a que fosse lembrado pelo governo), o que acabará por levar a um novo êxodo, provavelmente para os subúrbios da cidade. No fundo, o verdadeiro problema apenas será geograficamente afastado.

[1] Éditions Gallimard, 1995.
[2] Karisik (karışık): mista, misturada.
[3] Edição 206 do Middle East Report.

Artigo publicado no Aqui & Agora.

Good actions of the day

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2nd good action of the day : click to give, through The Breast Cancer Site.

Istambul, cidade-limite

Por vezes, odeio esta cidade. Percorro o meu caminho o mais depressa possível, fugindo de qualquer troca de olhares. E a minha raiva aumenta a cada passo. Apetece-me esmurrar o próximo homem que olhe para o meu corpo e revelar toda a hipocrisia desta sociedade à primeira mulher que olhe com reprovação os meus tornozelos descobertos. Desejo que um novo dilúvio leve para longe toda a sujidade e este calor húmido que se entranha na pele e me consome. Esgotada, imploro por dois minutos de silêncio nesta cidade que não dorme nunca. Dois minutos apenas. Mas confesso que nunca me passou pela cabeça a ideia de desistir. Se após um ano aqui estou de novo é porque Istambul é realmente a cidade-limite: até mesmo o ódio e o amor se confundem facilmente. Toda esta raiva que sinto por momentos não é mais do que uma intensa forma de paixão.


Não percebi à primeira o que ela me tentava dizer. Devia ter pouco mais de 40 anos e, pelo lenço na cabeça e pelas suas roupas conservadoras, facilmente se percebia que aquele não era o seu lugar. Àquela hora da madrugada, não havia mais ninguém para além de nós no café da estação de serviço, numa cidade-fantasma, algures na Turquia. Foram várias as horas que ali passámos enquanto esperávamos pelo nosso autocarro. Ela parecia não ter destino. Acabei por perceber que estava em fuga, mas que tinha deixado muita coisa importante para trás. Apesar das evidentes dificuldades de comunicação e de um sorriso amargo nos lábios, tentava explicar-me que com a minha idade já tinha mais de três filhos. Muitas vezes penso no que teria acontecido para ela ali estar e em qual terá sido o seu caminho.

Embora este encontro não tenha ocorrido em Istambul, não poderia ser mais esclarecedor sobre o espírito desta cidade. Istambul pode ter um passado extremamente rico – foi a capital de três impérios – o Romano, o Bizantino e o Otomano – mas a maior parte dos seus habitantes chegou a este local há relativamente pouco tempo. No fundo, Istambul é um amontoado de diferentes histórias pessoais, de passados de diversas minorias, que tentam sobreviver juntas sem perder aquilo que as distingue umas das outras. Para além disso, Istambul é uma das maiores áreas metropolitanas do mundo, com mais de 12 milhões de habitantes (existem estatísticas que chegam a referir 18 milhões), isto é, mais habitantes do que em todo o território português. Estes ingredientes são a principal base para uma cidade que fervilha sem cessar, onde o próprio ritmo de vida chega a ser difícil de acompanhar.

Em Istambul é impossível pensar-se a longo-prazo. Tudo muda de um dia para o outro. O bairro onde estou a viver actualmente é um exemplo perfeito da cidade-limite que é Istambul. Embora o meu apartamento esteja numa zona relativamente segura, este é um bairro considerado por muitos turcos como um local a evitar. Até mesmo os taxistas revelam alguma hesitação quando refiro “Tarlabasi”. O mais curioso, e inacreditável, é que, apesar disso, está localizado mesmo ao lado do coração comercial e cultural da cidade. Na verdade, não preciso de andar nem cinco minutos para estar na avenida mais conhecida de Istambul: a Istiklal. A linha divisória entre estes dois espaços é tão ténue que, muitas vezes, me sinto a viver na borderline, em todos os aspectos. De um lado, uma das zonas mais ricas da cidade, do outro o bairro de todos os “indesejáveis”.

Duas velocidades

Ninguém consegue ficar indiferente a esta cidade. Nunca senti tanta fluidez de pensamento como ao percorrer as suas ruas. O ritmo é alucinante e as coisas só param quando menos se espera, ou quando há futebol, claro. Uma das ruas em que este fenómeno é evidente é a já referida Istiklal. Muitas vezes me senti levada pela multidão, sem possibilidade de recuar ou abrandar. Muitas vezes entrei numa livraria ou num café, só para ficar a observar o fluir da multidão a partir de um dos andares superiores. É como se existissem duas comunidades que andam a ritmos diferentes. Uns permanecem diariamente no mesmo local e por ali andam, faça chuva ou faça sol. As únicas faces que reconheço são as dos mendigos e as dos vendedores ambulantes. As restantes perdem-se na multidão em movimento.

É curioso como esta rua está em constante mutação, seja de pessoas ou de locais. Durante a minha primeira estadia, todo o pavimento foi substituído por duas vezes (a primeira por necessidade, a segunda por alguém não ter ficado muito satisfeito com o resultado). Tenho ainda a sensação de que praticamente todas as vezes que a percorri descobri algo diferente, ou uma loja nova ou um pormenor que me tinha passado despercebido. Mesmo ao regressar a casa, de madrugada, já muitas são as pessoas que se preparam para a agitação de um novo dia.

Uma das profissões que mais se enquadra nesta peculiaridade é a de carregador ou transportador. Apesar de Istambul ser uma cidade cada vez mais moderna, estes não parecem estar em extinção, muito pelo contrário. É impressionante observar o trabalho dos carregadores de mercadorias pesadas, indivíduos que carregam quilos seja do que for às costas, literalmente. Lembro-me especialmente de uma mulher de bastante idade andar sempre para cima e para baixo com uma enorme carga de papelão (bem maior do que ela própria). Um dia, num artigo, acabei por descobrir que já tinha mais de 90 anos, que era reformada, e que só continuava a trabalhar por querer continuar a ajudar a neta a pagar os seus estudos.

Apesar de esta ser uma actividade cada vez menos frequente, existe um outro fenómeno bastante curioso, que se deve ao sucesso das entregas ao domicílio. Já era habitual observar a rotina dos vendedores de chá, que andam de loja em loja, de escritório em escritório, rua acima, rua abaixo a distribuir e a recolher copos com uma bandeja redonda. No entanto, a opção da entrega ao domicílio teve tanto sucesso entre a população, que actualmente pode-se encomendar quase qualquer tipo de produto por telefone, seja da farmácia, do supermercado, da tabacaria ou de um restaurante, praticante 24 horas por dia! Existe mesmo um website que engloba centenas de restaurantes e cafés, onde se pode encomendar qualquer tipo de comida (incluindo gelados!). Por isso, não é difícil imaginar a quantidade de estafetas que anda pelas ruas diariamente…

Tarlabasi

Por incrível que pareça, este bairro, Tarlabasi, considerado actualmente o mais problemático de Istambul, também teve os seus tempos de glória. Se tentarmos ver para além da sujidade e da deterioração, ainda encontramos muitos indícios da sua antiga magnificência. A rua onde vivo, por exemplo, pertencia a um antigo bairro grego, uma minoria que outrora teve um período de considerável riqueza. Os prédios, embora em decadência, ainda mantêm a sua arquitectura característica. Alguns ainda possuem estátuas na sua fachada. No meu prédio as escadas ainda são as originais, de autêntico mármore branco, com um corrimão de madeira de visível qualidade, trabalhada à mão (apesar de grande parte ter desaparecido, aproveitada provavelmente para aquecimento no Inverno).

Até à década de 50, este era um bairro próspero habitado por Gregos e por Arménios abastados. No entanto, após a fundação da República Turca, em 1923, a exigência de uma homogeneidade étnica e religiosa veio contrastar com esta comunidade não muçulmana, por isso, uma série de medidas governamentais discriminatórias levaram à partida forçada da maior parte dos residentes cristãos. Uma das medidas que mais impacto teve foi a do “Imposto de Riqueza” (1942-44), colocada em prática durante a II Guerra Mundial. Esta medida, implantada para a rectificação da economia, foi aplicada apenas em minorias, sobretudo gregas, judaicas e arménias, de forma a enfraquecer a dominação destes grupos étnicos na economia. Este sentimento de descriminação chegou ao seu auge quando, a seis e sete de Setembro de 1955, a população turca se juntou em revolta, em Istambul e em Izmir, contra estas minorias, pilhando os seus bens e as suas propriedades, entrando nas suas casas, espancando-as e ameaçando-as.

Muitos dos edifícios foram abandonados e, com o passar do tempo, Tarlabasi tornou-se o destino dos sem-abrigo e da população sem raízes, vinda de áreas rurais, sobretudo do Este da Turquia. A habitação barata atraiu imigrantes pobres de todo o mundo, incluindo refugiados do actual conflito iraquiano. Tarlabasi tornou-se num denso e caótico aglomerado de pessoas, num local deteriorado e com poucas condições de vida. Em 2000, estimava-se que cerca de 31 mil pessoas vivessem neste bairro, 78% das quais imigrantes. Estes habitualmente planeiam uma estadia curta, olhando para Istambul apenas como uma entrada fácil para a Europa, mas acabam por ir ficando. Na década de 90, o desejo de tornar Istambul “uma cidade do mundo” levou a que o espaço urbano fosse violentamente redesenhado. Durante esta operação de limpeza, 368 edifícios em Tarlabasi foram demolidos, muitos deles históricos. Beyoglu, do outro lado da Avenida Tarlabasi, foi alvo de um processo de gentrificação e tornou-se no centro de cultura e de entretenimento de Istambul. Tarlabasi simplesmente permaneceu do lado errado da avenida, o lado para onde foram varridos todos os indesejáveis, que sendo-o noutros locais aprendem a acolherem-se uns aos outros, à sua maneira. Enquanto, para muitos dos habitantes de Istambul, esta longa avenida apenas serve de ligação entre os diversos centros da cidade, para os residentes de Tarlabasi, esta é a “borderline”, a fronteira onde o trânsito se torna uma barreira, para que Tarlabasi permaneça isolado do resto da cidade e do mundo. Existe mesmo quem refira que Tarlabasi, sendo um bairro com um fluxo permanente de migrações, provavelmente está mais próximo de outras cidades com as quais tem relações espirituais do que aquela em que se encontra.

São habituais as disputas entre famílias e entre minorias num local em que o espaço público, se existe, está confinado às conversas em frente às suas portas, abertas para ruas-corredor. Recentemente, houve uma grande disputa entre curdos e ciganos, que obrigou à intervenção da polícia. Entre estes dois grupos a situação é algo frágil pois tendem a ver-se como rivais: ambos sabem que não são bem vistos pela sociedade turca em geral, por isso, acabam por competir pela posição menos inferior. Os curdos referem-se aos ciganos como infiéis e ladrões, os ciganos penduram bandeiras turcas nas janelas para lembrar que os curdos é que são perigosos para o país (dado que lutam por um estado independente).

Nem sempre a polícia se envolve nos conflitos em Tarlabasi. Num artigo intitulado “Tarlabasi: 'Another World' in the City”, por exemplo, Nermin Saybasili recorre a um conceito de Georgio Agamben para caracterizar este bairro: um “local deslocado”. Segundo Saybasili, enquanto a altamente visível presença das forças policiais exerce uma violência aberta sobre este espaço, também indica uma violência encoberta que constitui o espaço, pois os eventos que nele têm lugar muitas vezes não são vistos e são deixados por investigar.

É óbvio que os conflitos já fazem parte da rotina neste bairro. Sempre que vou trabalhar tenho de percorrer a Tarlabasi Boulevard, embora já só me atreva a fazê-lo do lado “certo”, e é impossível não reparar no carro de combate militar, um tanque, que já há anos se encontra em frente da sede da polícia do outro lado da avenida. Mas, muitas vezes, cheguei a atravessar este bairro, do lado “errado”, para ir para a universidade. Muitas vezes, até ao dia em que assisti a uma cena de espancamento colectivo de um único indivíduo. Não sei se foi do susto ou se realmente aconteceu, mas, a dada altura, pareceu-me ter ouvido os ossos do rapaz a partir com a força da paulada que levou nas pernas. Pareceu-me que todos os restantes sons e barulhos pararam e que ouvi cada estalido, como se assistisse a esta cena em câmara lenta. Ainda hoje me recordo perfeitamente do som. Encurralado numa esquina, rodeado por uma dezena de homens, não consigo, nem quero, imaginar o seu estado final. Em choque, desviei o olhar assim que me apercebi que um dos agressores olhava para mim, acelerei o passo sem correr, não olhei para trás quando me apercebi que me chamava e, apesar de não acreditar em religiões, rezei como uma crente fervorosa para que não me seguisse. Só parei quando a porta de casa se fechou atrás de mim e pude finalmente descarregar toda a tensão num ataque de choro incontrolável. Este foi um dos momentos em que não tive dúvidas de que odiava Istambul. Não repeti sozinha o mesmo percurso, mas também não me passou pela cabeça em desistir desta cidade.

Os vizinhos curdos

A primeira vez que entrei no prédio onde estou a viver actualmente pensei que não seria capaz de viver num lugar assim. Realmente, de noite, ninguém pode ter uma boa impressão deste local. As ruelas estreitas e escuras, o cheiro intenso vindo dos caixotes do lixo, o barulho dos gatos que fizeram da cave o seu local de refúgio… Mas, apesar de ser evidente que já há muito que precisa de obras de recuperação, acabei por ficar surpreendida com o estado do apartamento, bem mais “normal” do que esperava. As circunstâncias acabaram por determinar que esta fosse a minha morada fixa em Istambul no meu ano de estudante e que o voltasse a ser, nesta minha segunda estadia.

A multiculturalidade existente neste prédio foi o que mais me fascinou. A família mais marcante é, sem dúvida, a família curda que vive no apartamento imediatamente abaixo do nosso. Todos tivemos algumas dificuldades em perceber quantas pessoas moravam ao certo naquele apartamento e em compreender como seria a divisão do espaço. Nós éramos apenas cinco e nem sempre foi fácil a gestão do uso dos espaços comuns, principalmente o da única casa de banho. Naquele apartamento viviam três casais, cada um deles com os seus filhos. Considerando, que quatro filhos é o mínimo para uma família curda, bem… Talvez seja por isso que quase todos os dias nos apercebíamos de uma criança nova a entrar naquela casa e nunca tenhamos conseguido identificá-las todas. Também talvez seja por isso que, bem antes dos nossos despertadores tocarem de manhã, já os gritos ecoavam pelo prédio. As discussões e as crises são constantes e não têm qualquer problema em expressá-las verbalmente. Tudo termina uma meia hora depois, com um dos miúdos a chorar desalmadamente ou com alguém a sair de rompante e a porta a bater.

Acabei por me aperceber de que, embora provavelmente os homens tivessem a última palavra, o chefe de família naquela casa era a mulher mais velha. Entre os vários trabalhos que tinha, costumava ser ela a limpar as escadas do prédio, pedindo em troca 15 liras a cada família (e não havia quem lhe conseguisse fazer frente, por cobrar por algo que ninguém lhe tinha pedido, mesmo sendo o preço invulgarmente elevado). Lembro-me de um dia acordar com uma gritaria assustadora, desta vez mesmo à porta do nosso apartamento. Levantei-me a correr para me aperceber de que era a mulher, a reclamar pelo atraso do pagamento. Sem dúvida, descobriu um método eficaz e usa-o em todos os casos, seja qual for o problema: ninguém aguenta muito tempo os seus gritos estridentes.

Lembro-me também do dia em que toda a família pegou nas malas e se foi embora, orgulhosa por sair “de vez daquele buraco”. Um mês depois, para surpresa de todos os vizinhos, estavam de volta com as mesmas malas. Ninguém soube o que se passou durante aquele período nem onde estiveram. O mais engraçado foi a reacção da matriarca, assim que descobriu que já tinham arranjado outra pessoa para a substituir na limpeza das escadas. Começou pela táctica habitual, cansando toda a vizinhança com os seus gritos mas, como viu que o efeito desejado estava a tardar, pareceu desistir… No dia seguinte, cruzei-me com ela quando entrei no prédio. Sorriu para mim, abraçou-me e chamou-me de filha. Depois, apesar de habitualmente não fazer qualquer esforço para falar mais devagar, para que eu pudesse entender, disse-me calmamente, e ainda a sorrir, para eu não pagar à outra mulher porque estava a pensar em diminuir o preço habitual. No dia seguinte, e apesar das escadas terem sido limpas no dia anterior, acordámos com ela a lavar as escadas. E pronto. Tinha recuperado aquilo que era seu.

Quanto aos jovens da família, a situação também era algo peculiar. Muitas vezes vi as duas raparigas mais velhas a fumar às escondidas nas escadas (não imagino as consequências caso venham a ser apanhadas um dia por um dos membros da família). Não sei ao certo as suas idades, mas deviam ser bem jovens para ainda não estarem casadas. Apesar das diferenças religiosas (já usavam véu), olham para nós e para as nossas roupas modernas com risinhos infantis e envergonhados, como se as cobiçassem, apesar de terem consciência do pecado. Mais curioso ainda é a forma como desviam o olhar ao cruzarem-se com rapazes estrangeiros, com sorrisos sussurrados e faces rosadas.

Outra das invulgares personagens desta família é um dos rapazes mais velhos. Durante um jantar de amigos, bateu-nos à porta e entrou de rompante, ameaçando-nos com uma garrafa partida a servir de punhal. Logo de seguida, entraram outros dois irmãos, levaram-no dali e pediram-nos desculpa. Disseram que o rapaz tinha um parafuso a menos e para não nos metermos com ele. Uns tempos depois, descobrimos que era conhecido por ter furado a mão do patrão com um espeto de kebab, num ataque de fúria. Como é que toda esta gente consegue conviver no mesmo apartamento? Ainda hoje não faço a mínima ideiaia
* Apesar das diferenças mais evidentes entre Portugal e a Turquia, e embora quase tudo em Istambul ainda me pareça algo “estranho”, sinto que descobri algo mais sobre o meu próprio país durante a minha ausência. Estando actualmente a morar em Lisboa, todos os dias me das semelhanças profundas que existem entre estas duas cidades e entre estes dois povos. Em Istambul o Bósforo é uma parte viva da cidade, com os seus barcos a vapor e os seus pescadores. É nas ruas de calçada, estreitas e labirínticas, e nos seus pequenos mercados populares que encontramos a sua essência. As mesquitas, as vozes dos muezins a ecoarem por toda a cidade ao fazerem o chamamento para as cinco preces diárias. A música turca, o cheiro a peixe grelhado, futebol, futebol, futebol. Lisboa, o Tejo, os mercados, as igrejas, o fado, a sardinha assada, futebol. Mesmo aquilo que mais identifica o povo português deixa de parecer tão único em Istambul: a saudade. Segundo Orhan Pamuk, o Nobel turco da literatura, também Istambul e o povo turco vivem num permanente estado de saudade, “hüzün”, em relação aos seus tempos de glória. De acordo com Pamuk, “hüzün” não é a melancolia de uma única pessoa, mas sim algo sentido por milhões. Uma perda espiritual profunda ligada a uma certa esperança em relação ao futuro. Pelo que Pamuk sugere e pelo que tive oportunidade de experienciar em Istambul, também os seus habitantes esperam passivamente pelo retorno dos tempos de glória.

Todas as personagens incluídas nesta crónica são indivíduos que observei ou com os quais convivi. Não pretendo, de forma alguma, criar ou fomentar estereótipos de qualquer tipo. Tal como em qualquer outro país, na Turquia, e especialmente em Istambul, há que se ter em conta a multiculturalidade e a diversidade da população, não sendo possível qualquer generalização.

Artigo publicado no Aqui & Agora.

Suggestion of the day: kiva.org

"Kiva is the world's first person-to-person micro-lending website, empowering individuals to lend directly to unique entrepreneurs in the developing world."

http://www.kiva.org/

Taste and pollution

"As far as Istanbul is concerned," he says with a generous guffaw, "I'm a chauvinist. Nowhere does the fish taste as good as out of the Bosporus." However polluted it is.

Mario Levi,
in Qantara, Kai Strittmatter's article.

Identity

"I went on television and shouted: 'I'm Jewish.'" Once, ten years ago, a viewer rang live into his talkshow and wanted to know if Alaton felt like a Turk. "My family has been living here for 500 years," responded Alaton, "and yours?"


Ishak Alaton,
in Qantara, Kai Strittmatter's article

Late night food

"'Late night food' is a weak phrase for the life to be had in Istanbul after the sun goes down. Go to a club on the European side then munch candied peanuts on a ferry across to the Asian side and get ready for a crowd of Turks to grab you up and take you to where 'the real food' is. (...)"

Sascha Matuszak, Matador Nights

Another view on the scarf issue : Generation Faithful

"So at 16, she did something none of her friends had done: She put on an Islamic head scarf. In most Muslim countries, that would be a nonevent. In Turkey, it was a rebellion. (...)"

Sabrina Tavernise, The New York Times.

"The Turkish theologist who stopped wearing the headscarf"

"Like many of her classmates, Duran-Özsay quit her degree not because ‘it was God’s rule’, but because she didn’t accept the authority that was forcing her to uncover. (...)"

Kinia Adamczyk, Cafêbabel.

Communiquer



Gilbert Garcin
"l'Homme qui est une Image"
September 2008, Rennes

Hybrids

"But that is not us. I'm living in this country not as a 'moderate Islamic' person but as a hybrid (...)."

Müge Sokem, The Independent.