Por vezes, odeio esta cidade. Percorro o meu caminho o mais depressa possível, fugindo de qualquer troca de olhares. E a minha raiva aumenta a cada passo. Apetece-me esmurrar o próximo homem que olhe para o meu corpo e revelar toda a hipocrisia desta sociedade à primeira mulher que olhe com reprovação os meus tornozelos descobertos. Desejo que um novo dilúvio leve para longe toda a sujidade e este calor húmido que se entranha na pele e me consome. Esgotada, imploro por dois minutos de silêncio nesta cidade que não dorme nunca. Dois minutos apenas. Mas confesso que nunca me passou pela cabeça a ideia de desistir. Se após um ano aqui estou de novo é porque Istambul é realmente a cidade-limite: até mesmo o ódio e o amor se confundem facilmente. Toda esta raiva que sinto por momentos não é mais do que uma intensa forma de paixão.
Não percebi à primeira o que ela me tentava dizer. Devia ter pouco mais de 40 anos e, pelo lenço na cabeça e pelas suas roupas conservadoras, facilmente se percebia que aquele não era o seu lugar. Àquela hora da madrugada, não havia mais ninguém para além de nós no café da estação de serviço, numa cidade-fantasma, algures na Turquia. Foram várias as horas que ali passámos enquanto esperávamos pelo nosso autocarro. Ela parecia não ter destino. Acabei por perceber que estava em fuga, mas que tinha deixado muita coisa importante para trás. Apesar das evidentes dificuldades de comunicação e de um sorriso amargo nos lábios, tentava explicar-me que com a minha idade já tinha mais de três filhos. Muitas vezes penso no que teria acontecido para ela ali estar e em qual terá sido o seu caminho.
Embora este encontro não tenha ocorrido em Istambul, não poderia ser mais esclarecedor sobre o espírito desta cidade. Istambul pode ter um passado extremamente rico – foi a capital de três impérios – o Romano, o Bizantino e o Otomano – mas a maior parte dos seus habitantes chegou a este local há relativamente pouco tempo. No fundo, Istambul é um amontoado de diferentes histórias pessoais, de passados de diversas minorias, que tentam sobreviver juntas sem perder aquilo que as distingue umas das outras. Para além disso, Istambul é uma das maiores áreas metropolitanas do mundo, com mais de 12 milhões de habitantes (existem estatísticas que chegam a referir 18 milhões), isto é, mais habitantes do que em todo o território português. Estes ingredientes são a principal base para uma cidade que fervilha sem cessar, onde o próprio ritmo de vida chega a ser difícil de acompanhar.
Em Istambul é impossível pensar-se a longo-prazo. Tudo muda de um dia para o outro. O bairro onde estou a viver actualmente é um exemplo perfeito da cidade-limite que é Istambul. Embora o meu apartamento esteja numa zona relativamente segura, este é um bairro considerado por muitos turcos como um local a evitar. Até mesmo os taxistas revelam alguma hesitação quando refiro “Tarlabasi”. O mais curioso, e inacreditável, é que, apesar disso, está localizado mesmo ao lado do coração comercial e cultural da cidade. Na verdade, não preciso de andar nem cinco minutos para estar na avenida mais conhecida de Istambul: a Istiklal. A linha divisória entre estes dois espaços é tão ténue que, muitas vezes, me sinto a viver na borderline, em todos os aspectos. De um lado, uma das zonas mais ricas da cidade, do outro o bairro de todos os “indesejáveis”.
Duas velocidades
Ninguém consegue ficar indiferente a esta cidade. Nunca senti tanta fluidez de pensamento como ao percorrer as suas ruas. O ritmo é alucinante e as coisas só param quando menos se espera, ou quando há futebol, claro. Uma das ruas em que este fenómeno é evidente é a já referida Istiklal. Muitas vezes me senti levada pela multidão, sem possibilidade de recuar ou abrandar. Muitas vezes entrei numa livraria ou num café, só para ficar a observar o fluir da multidão a partir de um dos andares superiores. É como se existissem duas comunidades que andam a ritmos diferentes. Uns permanecem diariamente no mesmo local e por ali andam, faça chuva ou faça sol. As únicas faces que reconheço são as dos mendigos e as dos vendedores ambulantes. As restantes perdem-se na multidão em movimento.
É curioso como esta rua está em constante mutação, seja de pessoas ou de locais. Durante a minha primeira estadia, todo o pavimento foi substituído por duas vezes (a primeira por necessidade, a segunda por alguém não ter ficado muito satisfeito com o resultado). Tenho ainda a sensação de que praticamente todas as vezes que a percorri descobri algo diferente, ou uma loja nova ou um pormenor que me tinha passado despercebido. Mesmo ao regressar a casa, de madrugada, já muitas são as pessoas que se preparam para a agitação de um novo dia.
Uma das profissões que mais se enquadra nesta peculiaridade é a de carregador ou transportador. Apesar de Istambul ser uma cidade cada vez mais moderna, estes não parecem estar em extinção, muito pelo contrário. É impressionante observar o trabalho dos carregadores de mercadorias pesadas, indivíduos que carregam quilos seja do que for às costas, literalmente. Lembro-me especialmente de uma mulher de bastante idade andar sempre para cima e para baixo com uma enorme carga de papelão (bem maior do que ela própria). Um dia, num artigo, acabei por descobrir que já tinha mais de 90 anos, que era reformada, e que só continuava a trabalhar por querer continuar a ajudar a neta a pagar os seus estudos.
Apesar de esta ser uma actividade cada vez menos frequente, existe um outro fenómeno bastante curioso, que se deve ao sucesso das entregas ao domicílio. Já era habitual observar a rotina dos vendedores de chá, que andam de loja em loja, de escritório em escritório, rua acima, rua abaixo a distribuir e a recolher copos com uma bandeja redonda. No entanto, a opção da entrega ao domicílio teve tanto sucesso entre a população, que actualmente pode-se encomendar quase qualquer tipo de produto por telefone, seja da farmácia, do supermercado, da tabacaria ou de um restaurante, praticante 24 horas por dia! Existe mesmo um website que engloba centenas de restaurantes e cafés, onde se pode encomendar qualquer tipo de comida (incluindo gelados!). Por isso, não é difícil imaginar a quantidade de estafetas que anda pelas ruas diariamente…
Tarlabasi
Por incrível que pareça, este bairro, Tarlabasi, considerado actualmente o mais problemático de Istambul, também teve os seus tempos de glória. Se tentarmos ver para além da sujidade e da deterioração, ainda encontramos muitos indícios da sua antiga magnificência. A rua onde vivo, por exemplo, pertencia a um antigo bairro grego, uma minoria que outrora teve um período de considerável riqueza. Os prédios, embora em decadência, ainda mantêm a sua arquitectura característica. Alguns ainda possuem estátuas na sua fachada. No meu prédio as escadas ainda são as originais, de autêntico mármore branco, com um corrimão de madeira de visível qualidade, trabalhada à mão (apesar de grande parte ter desaparecido, aproveitada provavelmente para aquecimento no Inverno).
Até à década de 50, este era um bairro próspero habitado por Gregos e por Arménios abastados. No entanto, após a fundação da República Turca, em 1923, a exigência de uma homogeneidade étnica e religiosa veio contrastar com esta comunidade não muçulmana, por isso, uma série de medidas governamentais discriminatórias levaram à partida forçada da maior parte dos residentes cristãos. Uma das medidas que mais impacto teve foi a do “Imposto de Riqueza” (1942-44), colocada em prática durante a II Guerra Mundial. Esta medida, implantada para a rectificação da economia, foi aplicada apenas em minorias, sobretudo gregas, judaicas e arménias, de forma a enfraquecer a dominação destes grupos étnicos na economia. Este sentimento de descriminação chegou ao seu auge quando, a seis e sete de Setembro de 1955, a população turca se juntou em revolta, em Istambul e em Izmir, contra estas minorias, pilhando os seus bens e as suas propriedades, entrando nas suas casas, espancando-as e ameaçando-as.
Muitos dos edifícios foram abandonados e, com o passar do tempo, Tarlabasi tornou-se o destino dos sem-abrigo e da população sem raízes, vinda de áreas rurais, sobretudo do Este da Turquia. A habitação barata atraiu imigrantes pobres de todo o mundo, incluindo refugiados do actual conflito iraquiano. Tarlabasi tornou-se num denso e caótico aglomerado de pessoas, num local deteriorado e com poucas condições de vida. Em 2000, estimava-se que cerca de 31 mil pessoas vivessem neste bairro, 78% das quais imigrantes. Estes habitualmente planeiam uma estadia curta, olhando para Istambul apenas como uma entrada fácil para a Europa, mas acabam por ir ficando. Na década de 90, o desejo de tornar Istambul “uma cidade do mundo” levou a que o espaço urbano fosse violentamente redesenhado. Durante esta operação de limpeza, 368 edifícios em Tarlabasi foram demolidos, muitos deles históricos. Beyoglu, do outro lado da Avenida Tarlabasi, foi alvo de um processo de gentrificação e tornou-se no centro de cultura e de entretenimento de Istambul. Tarlabasi simplesmente permaneceu do lado errado da avenida, o lado para onde foram varridos todos os indesejáveis, que sendo-o noutros locais aprendem a acolherem-se uns aos outros, à sua maneira. Enquanto, para muitos dos habitantes de Istambul, esta longa avenida apenas serve de ligação entre os diversos centros da cidade, para os residentes de Tarlabasi, esta é a “borderline”, a fronteira onde o trânsito se torna uma barreira, para que Tarlabasi permaneça isolado do resto da cidade e do mundo. Existe mesmo quem refira que Tarlabasi, sendo um bairro com um fluxo permanente de migrações, provavelmente está mais próximo de outras cidades com as quais tem relações espirituais do que aquela em que se encontra.
São habituais as disputas entre famílias e entre minorias num local em que o espaço público, se existe, está confinado às conversas em frente às suas portas, abertas para ruas-corredor. Recentemente, houve uma grande disputa entre curdos e ciganos, que obrigou à intervenção da polícia. Entre estes dois grupos a situação é algo frágil pois tendem a ver-se como rivais: ambos sabem que não são bem vistos pela sociedade turca em geral, por isso, acabam por competir pela posição menos inferior. Os curdos referem-se aos ciganos como infiéis e ladrões, os ciganos penduram bandeiras turcas nas janelas para lembrar que os curdos é que são perigosos para o país (dado que lutam por um estado independente).
Nem sempre a polícia se envolve nos conflitos em Tarlabasi. Num artigo intitulado “Tarlabasi: 'Another World' in the City”, por exemplo, Nermin Saybasili recorre a um conceito de Georgio Agamben para caracterizar este bairro: um “local deslocado”. Segundo Saybasili, enquanto a altamente visível presença das forças policiais exerce uma violência aberta sobre este espaço, também indica uma violência encoberta que constitui o espaço, pois os eventos que nele têm lugar muitas vezes não são vistos e são deixados por investigar.
É óbvio que os conflitos já fazem parte da rotina neste bairro. Sempre que vou trabalhar tenho de percorrer a Tarlabasi Boulevard, embora já só me atreva a fazê-lo do lado “certo”, e é impossível não reparar no carro de combate militar, um tanque, que já há anos se encontra em frente da sede da polícia do outro lado da avenida. Mas, muitas vezes, cheguei a atravessar este bairro, do lado “errado”, para ir para a universidade. Muitas vezes, até ao dia em que assisti a uma cena de espancamento colectivo de um único indivíduo. Não sei se foi do susto ou se realmente aconteceu, mas, a dada altura, pareceu-me ter ouvido os ossos do rapaz a partir com a força da paulada que levou nas pernas. Pareceu-me que todos os restantes sons e barulhos pararam e que ouvi cada estalido, como se assistisse a esta cena em câmara lenta. Ainda hoje me recordo perfeitamente do som. Encurralado numa esquina, rodeado por uma dezena de homens, não consigo, nem quero, imaginar o seu estado final. Em choque, desviei o olhar assim que me apercebi que um dos agressores olhava para mim, acelerei o passo sem correr, não olhei para trás quando me apercebi que me chamava e, apesar de não acreditar em religiões, rezei como uma crente fervorosa para que não me seguisse. Só parei quando a porta de casa se fechou atrás de mim e pude finalmente descarregar toda a tensão num ataque de choro incontrolável. Este foi um dos momentos em que não tive dúvidas de que odiava Istambul. Não repeti sozinha o mesmo percurso, mas também não me passou pela cabeça em desistir desta cidade.
Os vizinhos curdos
A primeira vez que entrei no prédio onde estou a viver actualmente pensei que não seria capaz de viver num lugar assim. Realmente, de noite, ninguém pode ter uma boa impressão deste local. As ruelas estreitas e escuras, o cheiro intenso vindo dos caixotes do lixo, o barulho dos gatos que fizeram da cave o seu local de refúgio… Mas, apesar de ser evidente que já há muito que precisa de obras de recuperação, acabei por ficar surpreendida com o estado do apartamento, bem mais “normal” do que esperava. As circunstâncias acabaram por determinar que esta fosse a minha morada fixa em Istambul no meu ano de estudante e que o voltasse a ser, nesta minha segunda estadia.
A multiculturalidade existente neste prédio foi o que mais me fascinou. A família mais marcante é, sem dúvida, a família curda que vive no apartamento imediatamente abaixo do nosso. Todos tivemos algumas dificuldades em perceber quantas pessoas moravam ao certo naquele apartamento e em compreender como seria a divisão do espaço. Nós éramos apenas cinco e nem sempre foi fácil a gestão do uso dos espaços comuns, principalmente o da única casa de banho. Naquele apartamento viviam três casais, cada um deles com os seus filhos. Considerando, que quatro filhos é o mínimo para uma família curda, bem… Talvez seja por isso que quase todos os dias nos apercebíamos de uma criança nova a entrar naquela casa e nunca tenhamos conseguido identificá-las todas. Também talvez seja por isso que, bem antes dos nossos despertadores tocarem de manhã, já os gritos ecoavam pelo prédio. As discussões e as crises são constantes e não têm qualquer problema em expressá-las verbalmente. Tudo termina uma meia hora depois, com um dos miúdos a chorar desalmadamente ou com alguém a sair de rompante e a porta a bater.
Acabei por me aperceber de que, embora provavelmente os homens tivessem a última palavra, o chefe de família naquela casa era a mulher mais velha. Entre os vários trabalhos que tinha, costumava ser ela a limpar as escadas do prédio, pedindo em troca 15 liras a cada família (e não havia quem lhe conseguisse fazer frente, por cobrar por algo que ninguém lhe tinha pedido, mesmo sendo o preço invulgarmente elevado). Lembro-me de um dia acordar com uma gritaria assustadora, desta vez mesmo à porta do nosso apartamento. Levantei-me a correr para me aperceber de que era a mulher, a reclamar pelo atraso do pagamento. Sem dúvida, descobriu um método eficaz e usa-o em todos os casos, seja qual for o problema: ninguém aguenta muito tempo os seus gritos estridentes.
Lembro-me também do dia em que toda a família pegou nas malas e se foi embora, orgulhosa por sair “de vez daquele buraco”. Um mês depois, para surpresa de todos os vizinhos, estavam de volta com as mesmas malas. Ninguém soube o que se passou durante aquele período nem onde estiveram. O mais engraçado foi a reacção da matriarca, assim que descobriu que já tinham arranjado outra pessoa para a substituir na limpeza das escadas. Começou pela táctica habitual, cansando toda a vizinhança com os seus gritos mas, como viu que o efeito desejado estava a tardar, pareceu desistir… No dia seguinte, cruzei-me com ela quando entrei no prédio. Sorriu para mim, abraçou-me e chamou-me de filha. Depois, apesar de habitualmente não fazer qualquer esforço para falar mais devagar, para que eu pudesse entender, disse-me calmamente, e ainda a sorrir, para eu não pagar à outra mulher porque estava a pensar em diminuir o preço habitual. No dia seguinte, e apesar das escadas terem sido limpas no dia anterior, acordámos com ela a lavar as escadas. E pronto. Tinha recuperado aquilo que era seu.
Quanto aos jovens da família, a situação também era algo peculiar. Muitas vezes vi as duas raparigas mais velhas a fumar às escondidas nas escadas (não imagino as consequências caso venham a ser apanhadas um dia por um dos membros da família). Não sei ao certo as suas idades, mas deviam ser bem jovens para ainda não estarem casadas. Apesar das diferenças religiosas (já usavam véu), olham para nós e para as nossas roupas modernas com risinhos infantis e envergonhados, como se as cobiçassem, apesar de terem consciência do pecado. Mais curioso ainda é a forma como desviam o olhar ao cruzarem-se com rapazes estrangeiros, com sorrisos sussurrados e faces rosadas.
Outra das invulgares personagens desta família é um dos rapazes mais velhos. Durante um jantar de amigos, bateu-nos à porta e entrou de rompante, ameaçando-nos com uma garrafa partida a servir de punhal. Logo de seguida, entraram outros dois irmãos, levaram-no dali e pediram-nos desculpa. Disseram que o rapaz tinha um parafuso a menos e para não nos metermos com ele. Uns tempos depois, descobrimos que era conhecido por ter furado a mão do patrão com um espeto de kebab, num ataque de fúria. Como é que toda esta gente consegue conviver no mesmo apartamento? Ainda hoje não faço a mínima ideiaia
* Apesar das diferenças mais evidentes entre Portugal e a Turquia, e embora quase tudo em Istambul ainda me pareça algo “estranho”, sinto que descobri algo mais sobre o meu próprio país durante a minha ausência. Estando actualmente a morar em Lisboa, todos os dias me das semelhanças profundas que existem entre estas duas cidades e entre estes dois povos. Em Istambul o Bósforo é uma parte viva da cidade, com os seus barcos a vapor e os seus pescadores. É nas ruas de calçada, estreitas e labirínticas, e nos seus pequenos mercados populares que encontramos a sua essência. As mesquitas, as vozes dos muezins a ecoarem por toda a cidade ao fazerem o chamamento para as cinco preces diárias. A música turca, o cheiro a peixe grelhado, futebol, futebol, futebol. Lisboa, o Tejo, os mercados, as igrejas, o fado, a sardinha assada, futebol. Mesmo aquilo que mais identifica o povo português deixa de parecer tão único em Istambul: a saudade. Segundo Orhan Pamuk, o Nobel turco da literatura, também Istambul e o povo turco vivem num permanente estado de saudade, “hüzün”, em relação aos seus tempos de glória. De acordo com Pamuk, “hüzün” não é a melancolia de uma única pessoa, mas sim algo sentido por milhões. Uma perda espiritual profunda ligada a uma certa esperança em relação ao futuro. Pelo que Pamuk sugere e pelo que tive oportunidade de experienciar em Istambul, também os seus habitantes esperam passivamente pelo retorno dos tempos de glória.
Todas as personagens incluídas nesta crónica são indivíduos que observei ou com os quais convivi. Não pretendo, de forma alguma, criar ou fomentar estereótipos de qualquer tipo. Tal como em qualquer outro país, na Turquia, e especialmente em Istambul, há que se ter em conta a multiculturalidade e a diversidade da população, não sendo possível qualquer generalização.
Embora este encontro não tenha ocorrido em Istambul, não poderia ser mais esclarecedor sobre o espírito desta cidade. Istambul pode ter um passado extremamente rico – foi a capital de três impérios – o Romano, o Bizantino e o Otomano – mas a maior parte dos seus habitantes chegou a este local há relativamente pouco tempo. No fundo, Istambul é um amontoado de diferentes histórias pessoais, de passados de diversas minorias, que tentam sobreviver juntas sem perder aquilo que as distingue umas das outras. Para além disso, Istambul é uma das maiores áreas metropolitanas do mundo, com mais de 12 milhões de habitantes (existem estatísticas que chegam a referir 18 milhões), isto é, mais habitantes do que em todo o território português. Estes ingredientes são a principal base para uma cidade que fervilha sem cessar, onde o próprio ritmo de vida chega a ser difícil de acompanhar.
Em Istambul é impossível pensar-se a longo-prazo. Tudo muda de um dia para o outro. O bairro onde estou a viver actualmente é um exemplo perfeito da cidade-limite que é Istambul. Embora o meu apartamento esteja numa zona relativamente segura, este é um bairro considerado por muitos turcos como um local a evitar. Até mesmo os taxistas revelam alguma hesitação quando refiro “Tarlabasi”. O mais curioso, e inacreditável, é que, apesar disso, está localizado mesmo ao lado do coração comercial e cultural da cidade. Na verdade, não preciso de andar nem cinco minutos para estar na avenida mais conhecida de Istambul: a Istiklal. A linha divisória entre estes dois espaços é tão ténue que, muitas vezes, me sinto a viver na borderline, em todos os aspectos. De um lado, uma das zonas mais ricas da cidade, do outro o bairro de todos os “indesejáveis”.
Duas velocidades
Ninguém consegue ficar indiferente a esta cidade. Nunca senti tanta fluidez de pensamento como ao percorrer as suas ruas. O ritmo é alucinante e as coisas só param quando menos se espera, ou quando há futebol, claro. Uma das ruas em que este fenómeno é evidente é a já referida Istiklal. Muitas vezes me senti levada pela multidão, sem possibilidade de recuar ou abrandar. Muitas vezes entrei numa livraria ou num café, só para ficar a observar o fluir da multidão a partir de um dos andares superiores. É como se existissem duas comunidades que andam a ritmos diferentes. Uns permanecem diariamente no mesmo local e por ali andam, faça chuva ou faça sol. As únicas faces que reconheço são as dos mendigos e as dos vendedores ambulantes. As restantes perdem-se na multidão em movimento.
É curioso como esta rua está em constante mutação, seja de pessoas ou de locais. Durante a minha primeira estadia, todo o pavimento foi substituído por duas vezes (a primeira por necessidade, a segunda por alguém não ter ficado muito satisfeito com o resultado). Tenho ainda a sensação de que praticamente todas as vezes que a percorri descobri algo diferente, ou uma loja nova ou um pormenor que me tinha passado despercebido. Mesmo ao regressar a casa, de madrugada, já muitas são as pessoas que se preparam para a agitação de um novo dia.
Uma das profissões que mais se enquadra nesta peculiaridade é a de carregador ou transportador. Apesar de Istambul ser uma cidade cada vez mais moderna, estes não parecem estar em extinção, muito pelo contrário. É impressionante observar o trabalho dos carregadores de mercadorias pesadas, indivíduos que carregam quilos seja do que for às costas, literalmente. Lembro-me especialmente de uma mulher de bastante idade andar sempre para cima e para baixo com uma enorme carga de papelão (bem maior do que ela própria). Um dia, num artigo, acabei por descobrir que já tinha mais de 90 anos, que era reformada, e que só continuava a trabalhar por querer continuar a ajudar a neta a pagar os seus estudos.
Apesar de esta ser uma actividade cada vez menos frequente, existe um outro fenómeno bastante curioso, que se deve ao sucesso das entregas ao domicílio. Já era habitual observar a rotina dos vendedores de chá, que andam de loja em loja, de escritório em escritório, rua acima, rua abaixo a distribuir e a recolher copos com uma bandeja redonda. No entanto, a opção da entrega ao domicílio teve tanto sucesso entre a população, que actualmente pode-se encomendar quase qualquer tipo de produto por telefone, seja da farmácia, do supermercado, da tabacaria ou de um restaurante, praticante 24 horas por dia! Existe mesmo um website que engloba centenas de restaurantes e cafés, onde se pode encomendar qualquer tipo de comida (incluindo gelados!). Por isso, não é difícil imaginar a quantidade de estafetas que anda pelas ruas diariamente…
Tarlabasi
Por incrível que pareça, este bairro, Tarlabasi, considerado actualmente o mais problemático de Istambul, também teve os seus tempos de glória. Se tentarmos ver para além da sujidade e da deterioração, ainda encontramos muitos indícios da sua antiga magnificência. A rua onde vivo, por exemplo, pertencia a um antigo bairro grego, uma minoria que outrora teve um período de considerável riqueza. Os prédios, embora em decadência, ainda mantêm a sua arquitectura característica. Alguns ainda possuem estátuas na sua fachada. No meu prédio as escadas ainda são as originais, de autêntico mármore branco, com um corrimão de madeira de visível qualidade, trabalhada à mão (apesar de grande parte ter desaparecido, aproveitada provavelmente para aquecimento no Inverno).
Até à década de 50, este era um bairro próspero habitado por Gregos e por Arménios abastados. No entanto, após a fundação da República Turca, em 1923, a exigência de uma homogeneidade étnica e religiosa veio contrastar com esta comunidade não muçulmana, por isso, uma série de medidas governamentais discriminatórias levaram à partida forçada da maior parte dos residentes cristãos. Uma das medidas que mais impacto teve foi a do “Imposto de Riqueza” (1942-44), colocada em prática durante a II Guerra Mundial. Esta medida, implantada para a rectificação da economia, foi aplicada apenas em minorias, sobretudo gregas, judaicas e arménias, de forma a enfraquecer a dominação destes grupos étnicos na economia. Este sentimento de descriminação chegou ao seu auge quando, a seis e sete de Setembro de 1955, a população turca se juntou em revolta, em Istambul e em Izmir, contra estas minorias, pilhando os seus bens e as suas propriedades, entrando nas suas casas, espancando-as e ameaçando-as.
Muitos dos edifícios foram abandonados e, com o passar do tempo, Tarlabasi tornou-se o destino dos sem-abrigo e da população sem raízes, vinda de áreas rurais, sobretudo do Este da Turquia. A habitação barata atraiu imigrantes pobres de todo o mundo, incluindo refugiados do actual conflito iraquiano. Tarlabasi tornou-se num denso e caótico aglomerado de pessoas, num local deteriorado e com poucas condições de vida. Em 2000, estimava-se que cerca de 31 mil pessoas vivessem neste bairro, 78% das quais imigrantes. Estes habitualmente planeiam uma estadia curta, olhando para Istambul apenas como uma entrada fácil para a Europa, mas acabam por ir ficando. Na década de 90, o desejo de tornar Istambul “uma cidade do mundo” levou a que o espaço urbano fosse violentamente redesenhado. Durante esta operação de limpeza, 368 edifícios em Tarlabasi foram demolidos, muitos deles históricos. Beyoglu, do outro lado da Avenida Tarlabasi, foi alvo de um processo de gentrificação e tornou-se no centro de cultura e de entretenimento de Istambul. Tarlabasi simplesmente permaneceu do lado errado da avenida, o lado para onde foram varridos todos os indesejáveis, que sendo-o noutros locais aprendem a acolherem-se uns aos outros, à sua maneira. Enquanto, para muitos dos habitantes de Istambul, esta longa avenida apenas serve de ligação entre os diversos centros da cidade, para os residentes de Tarlabasi, esta é a “borderline”, a fronteira onde o trânsito se torna uma barreira, para que Tarlabasi permaneça isolado do resto da cidade e do mundo. Existe mesmo quem refira que Tarlabasi, sendo um bairro com um fluxo permanente de migrações, provavelmente está mais próximo de outras cidades com as quais tem relações espirituais do que aquela em que se encontra.
São habituais as disputas entre famílias e entre minorias num local em que o espaço público, se existe, está confinado às conversas em frente às suas portas, abertas para ruas-corredor. Recentemente, houve uma grande disputa entre curdos e ciganos, que obrigou à intervenção da polícia. Entre estes dois grupos a situação é algo frágil pois tendem a ver-se como rivais: ambos sabem que não são bem vistos pela sociedade turca em geral, por isso, acabam por competir pela posição menos inferior. Os curdos referem-se aos ciganos como infiéis e ladrões, os ciganos penduram bandeiras turcas nas janelas para lembrar que os curdos é que são perigosos para o país (dado que lutam por um estado independente).
Nem sempre a polícia se envolve nos conflitos em Tarlabasi. Num artigo intitulado “Tarlabasi: 'Another World' in the City”, por exemplo, Nermin Saybasili recorre a um conceito de Georgio Agamben para caracterizar este bairro: um “local deslocado”. Segundo Saybasili, enquanto a altamente visível presença das forças policiais exerce uma violência aberta sobre este espaço, também indica uma violência encoberta que constitui o espaço, pois os eventos que nele têm lugar muitas vezes não são vistos e são deixados por investigar.
É óbvio que os conflitos já fazem parte da rotina neste bairro. Sempre que vou trabalhar tenho de percorrer a Tarlabasi Boulevard, embora já só me atreva a fazê-lo do lado “certo”, e é impossível não reparar no carro de combate militar, um tanque, que já há anos se encontra em frente da sede da polícia do outro lado da avenida. Mas, muitas vezes, cheguei a atravessar este bairro, do lado “errado”, para ir para a universidade. Muitas vezes, até ao dia em que assisti a uma cena de espancamento colectivo de um único indivíduo. Não sei se foi do susto ou se realmente aconteceu, mas, a dada altura, pareceu-me ter ouvido os ossos do rapaz a partir com a força da paulada que levou nas pernas. Pareceu-me que todos os restantes sons e barulhos pararam e que ouvi cada estalido, como se assistisse a esta cena em câmara lenta. Ainda hoje me recordo perfeitamente do som. Encurralado numa esquina, rodeado por uma dezena de homens, não consigo, nem quero, imaginar o seu estado final. Em choque, desviei o olhar assim que me apercebi que um dos agressores olhava para mim, acelerei o passo sem correr, não olhei para trás quando me apercebi que me chamava e, apesar de não acreditar em religiões, rezei como uma crente fervorosa para que não me seguisse. Só parei quando a porta de casa se fechou atrás de mim e pude finalmente descarregar toda a tensão num ataque de choro incontrolável. Este foi um dos momentos em que não tive dúvidas de que odiava Istambul. Não repeti sozinha o mesmo percurso, mas também não me passou pela cabeça em desistir desta cidade.
Os vizinhos curdos
A primeira vez que entrei no prédio onde estou a viver actualmente pensei que não seria capaz de viver num lugar assim. Realmente, de noite, ninguém pode ter uma boa impressão deste local. As ruelas estreitas e escuras, o cheiro intenso vindo dos caixotes do lixo, o barulho dos gatos que fizeram da cave o seu local de refúgio… Mas, apesar de ser evidente que já há muito que precisa de obras de recuperação, acabei por ficar surpreendida com o estado do apartamento, bem mais “normal” do que esperava. As circunstâncias acabaram por determinar que esta fosse a minha morada fixa em Istambul no meu ano de estudante e que o voltasse a ser, nesta minha segunda estadia.
A multiculturalidade existente neste prédio foi o que mais me fascinou. A família mais marcante é, sem dúvida, a família curda que vive no apartamento imediatamente abaixo do nosso. Todos tivemos algumas dificuldades em perceber quantas pessoas moravam ao certo naquele apartamento e em compreender como seria a divisão do espaço. Nós éramos apenas cinco e nem sempre foi fácil a gestão do uso dos espaços comuns, principalmente o da única casa de banho. Naquele apartamento viviam três casais, cada um deles com os seus filhos. Considerando, que quatro filhos é o mínimo para uma família curda, bem… Talvez seja por isso que quase todos os dias nos apercebíamos de uma criança nova a entrar naquela casa e nunca tenhamos conseguido identificá-las todas. Também talvez seja por isso que, bem antes dos nossos despertadores tocarem de manhã, já os gritos ecoavam pelo prédio. As discussões e as crises são constantes e não têm qualquer problema em expressá-las verbalmente. Tudo termina uma meia hora depois, com um dos miúdos a chorar desalmadamente ou com alguém a sair de rompante e a porta a bater.
Acabei por me aperceber de que, embora provavelmente os homens tivessem a última palavra, o chefe de família naquela casa era a mulher mais velha. Entre os vários trabalhos que tinha, costumava ser ela a limpar as escadas do prédio, pedindo em troca 15 liras a cada família (e não havia quem lhe conseguisse fazer frente, por cobrar por algo que ninguém lhe tinha pedido, mesmo sendo o preço invulgarmente elevado). Lembro-me de um dia acordar com uma gritaria assustadora, desta vez mesmo à porta do nosso apartamento. Levantei-me a correr para me aperceber de que era a mulher, a reclamar pelo atraso do pagamento. Sem dúvida, descobriu um método eficaz e usa-o em todos os casos, seja qual for o problema: ninguém aguenta muito tempo os seus gritos estridentes.
Lembro-me também do dia em que toda a família pegou nas malas e se foi embora, orgulhosa por sair “de vez daquele buraco”. Um mês depois, para surpresa de todos os vizinhos, estavam de volta com as mesmas malas. Ninguém soube o que se passou durante aquele período nem onde estiveram. O mais engraçado foi a reacção da matriarca, assim que descobriu que já tinham arranjado outra pessoa para a substituir na limpeza das escadas. Começou pela táctica habitual, cansando toda a vizinhança com os seus gritos mas, como viu que o efeito desejado estava a tardar, pareceu desistir… No dia seguinte, cruzei-me com ela quando entrei no prédio. Sorriu para mim, abraçou-me e chamou-me de filha. Depois, apesar de habitualmente não fazer qualquer esforço para falar mais devagar, para que eu pudesse entender, disse-me calmamente, e ainda a sorrir, para eu não pagar à outra mulher porque estava a pensar em diminuir o preço habitual. No dia seguinte, e apesar das escadas terem sido limpas no dia anterior, acordámos com ela a lavar as escadas. E pronto. Tinha recuperado aquilo que era seu.
Quanto aos jovens da família, a situação também era algo peculiar. Muitas vezes vi as duas raparigas mais velhas a fumar às escondidas nas escadas (não imagino as consequências caso venham a ser apanhadas um dia por um dos membros da família). Não sei ao certo as suas idades, mas deviam ser bem jovens para ainda não estarem casadas. Apesar das diferenças religiosas (já usavam véu), olham para nós e para as nossas roupas modernas com risinhos infantis e envergonhados, como se as cobiçassem, apesar de terem consciência do pecado. Mais curioso ainda é a forma como desviam o olhar ao cruzarem-se com rapazes estrangeiros, com sorrisos sussurrados e faces rosadas.
Outra das invulgares personagens desta família é um dos rapazes mais velhos. Durante um jantar de amigos, bateu-nos à porta e entrou de rompante, ameaçando-nos com uma garrafa partida a servir de punhal. Logo de seguida, entraram outros dois irmãos, levaram-no dali e pediram-nos desculpa. Disseram que o rapaz tinha um parafuso a menos e para não nos metermos com ele. Uns tempos depois, descobrimos que era conhecido por ter furado a mão do patrão com um espeto de kebab, num ataque de fúria. Como é que toda esta gente consegue conviver no mesmo apartamento? Ainda hoje não faço a mínima ideiaia
* Apesar das diferenças mais evidentes entre Portugal e a Turquia, e embora quase tudo em Istambul ainda me pareça algo “estranho”, sinto que descobri algo mais sobre o meu próprio país durante a minha ausência. Estando actualmente a morar em Lisboa, todos os dias me das semelhanças profundas que existem entre estas duas cidades e entre estes dois povos. Em Istambul o Bósforo é uma parte viva da cidade, com os seus barcos a vapor e os seus pescadores. É nas ruas de calçada, estreitas e labirínticas, e nos seus pequenos mercados populares que encontramos a sua essência. As mesquitas, as vozes dos muezins a ecoarem por toda a cidade ao fazerem o chamamento para as cinco preces diárias. A música turca, o cheiro a peixe grelhado, futebol, futebol, futebol. Lisboa, o Tejo, os mercados, as igrejas, o fado, a sardinha assada, futebol. Mesmo aquilo que mais identifica o povo português deixa de parecer tão único em Istambul: a saudade. Segundo Orhan Pamuk, o Nobel turco da literatura, também Istambul e o povo turco vivem num permanente estado de saudade, “hüzün”, em relação aos seus tempos de glória. De acordo com Pamuk, “hüzün” não é a melancolia de uma única pessoa, mas sim algo sentido por milhões. Uma perda espiritual profunda ligada a uma certa esperança em relação ao futuro. Pelo que Pamuk sugere e pelo que tive oportunidade de experienciar em Istambul, também os seus habitantes esperam passivamente pelo retorno dos tempos de glória.
Todas as personagens incluídas nesta crónica são indivíduos que observei ou com os quais convivi. Não pretendo, de forma alguma, criar ou fomentar estereótipos de qualquer tipo. Tal como em qualquer outro país, na Turquia, e especialmente em Istambul, há que se ter em conta a multiculturalidade e a diversidade da população, não sendo possível qualquer generalização.
Artigo publicado no Aqui & Agora.
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